Tuesday, October 09, 2007

A dama de preto chega sem avisar

O telefone tocou antes das sete da manhã. Clara odiava quando o telefone tocava antes das sete da manhã. Nunca era coisa boa. Quase sempre era alguma amiga bêbada, precisando de cuidados e pedindo abrigo em sua casa. Mas naquela manhã nublada de janeiro a ligação traria uma notícia pior.

Os primeiros toques do celular chegaram nos sonhos de Clara. No começo ela achou que fosse o sino de uma igreja gótica, às margens do rio Sena. Depois percebeu que nunca tinha saído do Brasil, muito menos a Paris. Só podia ser o despertador do celular. Mas era sábado, porra. Será que ela tinha programado o celular, sem querer, no final de semana?

Tinha na época 22 anos. Odiava acordar cedo com todas as suas forças. Mas estava no último ano da faculdade, fazendo estágio, trabalho de conclusão, com medo do mercado de trabalho e acordando todo dia às sete e meia da manhã para ir ouvir um velho repórter frustrado falar sobre o papel da mídia na sociedade moderna ou uma quarentona descolada explicar como conquistava suas fontes.

Clara virou para lado e buscou seu celular. Olhou no visor “Pai chamando”. Definitivamente não era coisa boa. Tinha herdado de seu pai a repulsa por acordar cedo. Se o velho estava ligando naquela hora, boa coisa não era.

_Alô... (voz saiu falhada, como toda voz sai ao acordar)

_ Oi filha. Ahã, a tua tia acabou de me ligar. A vó, a minha mãe... A tua vó morreu.

Tudo ficou turvo na vista de Clara. Será que o sonho as margens do Sena tinha virado um pesadelo? Sua avó tinha estado no hospital no mês anterior. Mas já estava melhor, tinha voltado para casa. Ela tinha falado com a avó no telefone ontem. O que mesmo que tinha falado? Será que Clara tinha falado o quanto a amava? O símbolo de mulher forte que representava para a neta? Na semana seguinte elas tinham combinado de almoçar juntas. Dona Alice não desmarcava compromissos, principalmente com a neta. Como tudo aquilo podia estar acontecendo?

_ Filha, tu está aí? Está me ouvindo? Vou pegar teu irmão, quer que eu passe aí? Vamos nos reunir na casa da mãe, digo, do pai...

Clara se sentiu um tanto egoísta. Perdida em seus pensamentos nem se tocara que ela tinha perdido sua avó, mas seu pai tinha perdido a mãe. Devia estar mais confuso e desnorteado que ela.

_ Não pai, não precisa. Vou falar com a mãe. Vou com ela. Nos encontramos lá, está bem? Já, já estou indo para lá também.

Depois de desligar o telefone, Clara respirou fundo três vezes. Queria se controlar antes de bater na porta do quarto da mãe. Queria ensaiar alguma maneira de contar a notícia de um jeito bom. Não conseguiu. Levantou na cama, se olhou no espelho e começou a chorar. Sem parar. Soluçar. Até que, sem querer, soltou um grito, que acordou a mãe:

_ O que houve minha filha? O que aconteceu? Me fala...

_ A vó Alice, mãe. A vó Alice... Morreu.

A mãe de Clara também perdeu o chão. Tinha se separado do pai da menina há mais de 10 anos, mas seguiu com um relacionamento muito forte com a ex-sogra. O carinho que a matriarca da família Abeu tinha pela mãe de seus netos era muito grande e a recíproca verdadeira.

Toda vez que Clara pensava na relação da avó com alguém sentia que aquele dia ia ser um dos mais difíceis da sua vida. E seria um dia longo. Ao abraçar a mãe viu por cima do seu ombro que nem dez minutos tinham passado desde que ela tinha recebido a terrível notícia. Para ela, parecia que já estava sofrendo há horas.

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“Lavar o rosto, escolher uma roupa. Para quem ligar? Devo avisar minhas amigas? Será que alguém já ligou para minha prima? Que roupa eu coloco? Para que tudo isso? Ai, meu avô deve estar muito mal...” Clara não conseguia organizar os pensamentos. Só sabia que não queria ficar sozinha. Que queria estar perto da família, perto de gente que entendesse o que ela estava passando.

Sem nem perceber, colocou o vestido roxo que avó tinha lhe dado de presente no último Natal. A mãe falou para ela comer. Tentou suco, leite, bolacha de água e sal. Nada desceu. Desistiram do café e foram encontrar o resto da família.

No táxi, a caminho da casas dos avós, Clara prestou atenção em cada curva, árvore e rua do caminho. Através das lentes dos óculos escuros avistou na esquina da casa, seu pai e seu irmão descendo do carro. Desceu do táxi, caminhou até seu pai e o abraçou por longos segundos, sem conseguir dizer uma palavra.

Dentro da casa, o clima era de praticidade. A tia mais velha de Clara tinha assumido o controle da situação. Tinha feito uma lista e ficava disparando perguntando aos outros familiares. “Ligaram para o Fulano? Encomendaram as flores? Quem faz o anuncio para o jornal?”, disparava.

No meio do mar de perguntas e respostas, Clara avistou seu avô. Sentando numa poltrona no canto da sala, ele olhava fixamente para um ponto na parede, sem mal piscar. A neta se aproximou para abraçá-lo e ele disse:

_ Ela estava bem, vimos um filme e conversamos ontem de noite. Ela falou que ia almoçar contigo semana que vem. Ela me deu um beijo no rosto antes de dormir...Daí de madrugada acordei com um gemido forte e o peso do corpo dela caindo no meu corpo. Foi tudo tão rápido. Chamamos médico, ambulância, mas já era tarde demais...

Então era assim que a morte chegava: de repente, pensou Clara. A avó era a primeira pessoa próxima dela que morria. A outra avó era mais distante dela, mas estava viva em bem disposta numa cidade do interior. Já o outro avô morrera cedo, quando ela tinha menos de cinco anos e pouca capacidade de lembrar.

A morte chegava perto da vida dela só agora, depois do 20 anos. A maioria das amigas já tinha passado por isso com avós, tios-avós ou até pais. Mas Clara se via lidando com algo que ela não estava preparada. E logo com avó que ela era tão próxima, tão íntima, tão ligada.

A jovem sentou ao lado do avô e ficou tentado pensar em algo para dizer, mas nada lhe ocorreu. Poucos minutos depois, alguém veio ver se Clara e o avô queriam comer algo. Ela ainda não conseguia pensar em comer. Mas não queria ficar mais na sala, quase que sem função e resolveu ajudar a tia a servir café para as pessoas. Se não conseguia ter palavras para acalentar ninguém, servindo fortes doses de cafeína para a família colaboraria de alguma maneira.

Depois do pai e dos tios resolverem algumas coisas pendentes, a família seguiu para o cemitério. Quando era mais nova Clara tinha fascínio por lugares sombrios. Perdeu a conta das vezes que atravessou, por pura curiosidade, o cemitério que tinha ao do seu colégio. Achava que era um lugar calmo e tranqüilo. Mas naquele dia, mesmo antes de chegar ao local do enterro, Clara soube que sua imagem de cemitério mudaria. No mínimo, seria o palco de um dos piores dias da vida dela.

Assim que chegou na capela grande, onde a avó fora colocada, Clara suou frio. Já haviam algumas pessoas lá, sentadas ao redor do caixão, contemplativas. Entre tias-avós, vizinhas e primas de sua avó, estava seu avô. O velho patriarca da família Abreu escolheu a cadeira mais perto do caixão onde estava sua mulher e dali não saiu a tarde inteira.

Os avós eram um símbolo para Clara. Um símbolo de casal realmente apaixonado depois de mais 50 anos de união. Um símbolo de força, disposição, inteligência. Quando viu aquela cena temeu pelo futuro do seu Francisco, que não teria mais sua ‘nega’ ao seu lado.

Pé ante pé, Clara caminhou até aquele corpo que representava tanto para ela. Lembrou de Natais, brincadeiras, de deitar ao lado da avó na cama e assisti-la tricotar. “Vó, faz um vestido para minha boneca? E um para mim, faz também?”.

Aquilo era muito estranho. O corpo, as roupas e o perfume eram da avó. Mas chegou bem perto do caixão e viu, no rosto deitado, uma expressão que não reconheceu. Respirou fundo e saiu de perto. Não fazia sentido nenhum ficar por perto: a avó não estava mais por aqui.

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Surpreendentemente, boa parte daquela tarde não foi tão sofrida para a neta da dona Alice. Muitas pessoas circularam pela funeral. Amigos, parentes próximos e distantes. Seu tio chegou de Brasília no meio da tarde. Uma irmã da avó veio às pressas do exterior. Todos que chegavam faziam questão de falar com seu Francisco e alguns conversavam com Clara. Condolências, abraços e muitas memórias.

Um primo lembrou da deliciosa ambrosia feita pela avó. Uma ex-vizinha da família recordou os cartões que sempre recebia pelo correio, todo Natal e aniversário. Um tio falou do bom humor da mãe e o irmão lembrou que ela sempre falava demais.

Durante o clima de recordações. Clara pensou que a avó merecia estar ali ouvindo as pessoas falarem tão bem dela. Questionou a vida após a morte, a eternidade, o fim da vida - mas como sempre no caso dela, não chegou a nenhuma conclusão.

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Foi na hora da missa final que Clara sentiu a maior dor. O padre falou palavras motivadoras de agradecimento e superação. Em vão. Quase todos no recinto choravam.

Na hora da última oração seu Francisco pegou na mão da mulher. Os dois, sempre tão católicos, iam juntos à missa, quase todo domingo. Durante o Pai Nosso a família se rendeu: as tias de Clara choraram alto, o pai e o tio de Clara, ateus por convicção, homenagearam a fé da mãe e repetiram a oração que não rezavam desde a pré-adolescência.

Clara segurou forte na mão do irmão que chorava tanto ou mais que ela. A dor do vazio tomou conta do coração dela. Era isso. A avó tinha partido. Teve vontade de gritar, clamar por justiça. Dona Alice não ia ver sua neta mais velha se formar na faculdade? Não iria ao casamento de um dos netos daqui menos de seis meses? Clara não aprendera a fazer ambrosia e parecia estar esquecendo o gosto do famoso doce da avó enquanto anunciavam o fechamento do caixão. A vida parecia injusta demais.

Dos momentos finais do sepultamento, quase ninguém da família lembra. Estavam todos inebriados por lágrimas, tristeza e dor. Clara estava lá, mas também pouco recorda, estava quase que anestesiada por aquele dia cansativo.

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Durante a semana seguinte Clara tentou processar a dor. Racionalizou a morte e tentou desviar seus pensamentos da dor. Acabou conseguindo. Não que o vazio tivesse sido preenchido e não existisse mais. As saudades da avó agora iriam durar para sempre. Mas, aos poucos, a dor iria ficar mais escondida entre outros sentimentos. Clara só torcia para que fossem sentimentos felizes.

A moça se permitiu mergulhar na dor mais uma vez naquela semana. No dia do almoço marcado, a Clara abriu a agenda e viu escrito “almoço com a vó: confirmar lugar”. Quase todos os almoços das duas eram no mesmo restaurante, num shopping perto da casa da avó. No dia marcado, Clara foi até o lugar. Sentou sozinha, pediu um prato e almoçou de óculos escuros, na tentativa que os garçons não percebessem que ela chorava. Em vão.

1 comment:

Di Giacomo said...

Chorei, querida! Chorei