Sunday, October 14, 2007

Rock do bem


Bono Vox não é o único roqueiro preocupado em defender boas causas. Aliás, está longe disso. Vários ídolos aproveitam sua fama para lutar por justiça e um mundo melhor. A banda americana System of a Down está nesta lista de músicos engajados.

Um dos filmes que participa da Perspectiva Internacional da 31ª Mostra prova isso. O documentário Screamers, da diretora Carla Garapedian, mostra a luta dos integrantes do System of a Down para que os governos americano e inglês reconheçam o genocídio feito contra o povo armênio em 1915. O massacre, que matou cerca de 1,5 milhão de pessoas, é até hoje negado pela Turquia.

O filme acompanha essa campanha e uma turnê da banda - toda formada por descendentes de armênios -, além de discutir outros genocídios da história, como o Holocausto e os que aconteceram em Ruanda, Bósnia, Iraque e o que vem ocorrendo em Darfur.

Durante os 91 minutos de filme, são mostradas cenas chocantes de crimes cruéis contra a humanidade, tristes histórias de sobreviventes e análises de políticos, historiadores e outros especialistas sobre os massacres.

Saí da sessão para a imprensa do filme com um peso nas costas e aquele sensação de que é preciso fazer alguma coisa para que as pessoas parem de sofrer em vão. Espero que esse filme cause a mesma impressão em mais pessoas.

Friday, October 12, 2007

5x1: João Gordo

Quando eu era pré adolescente eu não gostava de punks.
Pensava naqueles caras fedidos que andavam no centro de Porto Alegre, com os cabelos espetados e roupas rasgadas.
Também lembrava do arroto que o João Gordo dava no começo de uma regravação do hino do Palmeiras, feita para um CD da revista Placar. Até hoje sei o hino da maioria dos times brasileiros, menos o do alviverde paulista, que eu sempre pulava.
Só na adolescencia fui descobrir que várias das bandas que eu ouvia e gostava eram punks ou tinham inspiração no ritmo. Pô, porque ninguém tinha me contado que Clash era punk?
Alguns anos após minhas - tímidas, admito- incursões pelo mundo do punk rock acabei por chegar aqui: namoro um punk e entrevistei (juntos com outros amigos) o João Gordo.
E descobri que o tal arrotão se tornou em simpático e esforçado pai de família.
Veja vocês:
** Além de mim, fazem parte do time do "5 contra um": Artur Louback, Felipe Van Deursen, Gustavo Heidrich e Fred Di Giacomo (o namorado punk)

Tuesday, October 09, 2007

Verdades femininas

Elas tinham combinado de almoçar no sábado, mas três delas acordaram de ressaca e uma delas insistia em não atender o celular. "Deve estar dando para algum cara desconhecido" pensou Clara enquanto tentava ligar para Ana pela quinta vez. Depois do sinal chamar três vezes, desistiu. Já eram três da tarde e ela estava com fome.
Quando foi abrir a geladeira para procurar alguma fruta perdida ou iogurte vencido seu celular tocou. Era Cláudia, uma das outras amigas do almoço furado.
_Vamos comer, vamos. Vou passar na casa da Letícia depois passo aí. Tu ligas para Ana?
_Já liguei para Ana mais de cinco vezes. Ela não atende o celular.
_ Humpf! Deve estar dando para algum cara desconhecido. – Cláudia falou o que Clara não teve coragem de dizer em voz alta.
Cláudia encostou o carro popular que dividia com a mãe em frente ao prédio de Clara uns 20 minutos depois da conversa. Durante esse meio tempo, Clara trocou de roupa umas 10 vezes, alternando saia florida com blusa preta, blusa preta com calça jeans, calça jeans com blusa branca e por fim blusa branca com saia florida.
Verdade feminina número um: armários podem ser os melhores e os piores amigos de uma garota, não importa o número de roupas que ele guarde.
Quando Clara entrou no carro, Letícia comentou, sem maldade e quase resignada:
_O dia que não esperarmos tu trocares trocentas vezes de roupa, vou achar que tu foste abduzida e trocaram teu corpo por um ET.
- Hahaha, engraçadinha. Vocês têm que me aceitar como amiga na alegria e na doença, tá?
_Elelê, calma lá - gritou Cláudia enquanto acendia um cigarro. Não penso nem em casar com homem, que dirá fazer juramento eterno com mulher.

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As três partiram rumo ao bairro boêmio da cidade, que durante o dia se tornava um lugar cool e quase família. Os bares que há poucas horas estavam lotados de bêbados, agora recebiam famílias neo hippies e jovens casais alternativos.
O garçom chegou e as gurias pediram em coro cocas-diet com gelo e limão, receita infalível para curar a ressaca. Para comer, pediram uma porção de polenta, filé aperitivo e salada. Típicas mulheres que eram, tinham a esperança de se encher de salada e esquecer da polenta. Quase sempre acontecia ao contrário: a salada era deixada de lado e novas porções de polenta eram pedidas.
As quatro – as três do bar mais a amiga "desaparecida" – se reuniam quase sempre nas tardes de sábado para falar da vida, de homens e de sexo. Não, não as confunda com as voluptuosas, chiques e experientes mulheres de Sex and City, com seus quase quarenta anos e cheias de experiências sexuais. Essas amigas eram jovens adultas, recém formadas, em seus primeiros empregos remunerados e ainda imaturas em seus relacionamentos.
Se conheciam há uns dez anos, quando ainda estavam dando seus primeiros beijos. Durante essa década de amizade, passaram por namoros, perdas de virgindade, traições, abandonos, pés-na-bunda e outras coisas mais. Os pais de uma se separam, a avó preferida da outra morreu. Uma amiga de todas teve que fazer um aborto, de um namorado desnecessário do final da adolescência. Todos dramas enfrentados com a ajuda uma das outras.
Letícia pediu a palavra assim que tomou seu primeiro gole de refrigerante e se sentiu acordada e recuperada suficiente para falar da noite anterior:


_ Então, eu e o Diego transamos ontem de noite.
_ Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
Um grito coletivo tomou conta da mesa. Letícia tinha sido a última das amigas a perder a virgindade e era retraída sexualmente. Tinha mil e uma encanações, vergonhas e travas. Se achava pouco sexy e atraente. Tudo invenção da sua cabeça: Letícia era magra, tinha lindos cabelos lisos e castanhos, com um corte pelo ombro, peitos bem avantajados e um tipo verdadeiramente intelectual que fazia dezenas de homens ficarem de quatro.


_ Conta tudo! – disseram as outras duas amigas em coro, ao mesmo tempo que o celular de Clara tocou.
_ Ah, é a Ana. Oi Ana? Onde tu está, sua louca? Ahã? Quê? Está bem, está bem. Me escuta: estamos no Pingüim num almoço tardio. Vem para cá que a Letícia finalmente deu para o Diego ontem!
Clara desligou o celular, revirou os olhos e fez o resumo. Sim, ela estava com um cara desconhecido. Sim, ela tinha transado com ele. Não, ela não sabia direito quem era o cara. Mas ela queria saber tudo da Letícia e do Diego, então ia encontrar as amigas no bar.
Letícia respirou fundo. Devia esperar Ana chegar para contar a história? Não, não de jeito nenhum!!! Ela que contasse a história duas vezes, pois as amigas estavam ansiosas.

_Ok. Depois da balada, ele falou que ia me dar carona para casa. Aproveitei que estava bêbada e soltei um "porque não vamos para a tua?". Ele me olhou um pouco assuntado, mas concordou, com um leve sorriso nos lábios. Quando chegamos no apartamento dele, quase mudei de idéia: logo na entrada, tropecei num carrinho de corrida, que fez um barulhão. Pensei que ele podia ter um filho, sei lá. Mas era pior: aquele carrinho era do irmão de nove anos. Sim, ele me levou para a casa dos pais dele. E os velhos estavam lá!
_ Puta que pariu, é brincadeira isso, né? Porque o cara não te levou para um motel, sei lá?
_ Ah, não sei. Acho que se ele falasse "vamos para um motel?" eu diria que não. Mas enfim, quando descobri que os pais dele estavam em casa eu surtei. Falei que ia embora, que não ia ter coragem de ficar lá. Mas não sei se era porque eu estava bêbada, com tesão, ou quê. Sei que ele me convenceu a ficar. E fomos para o quarto dele.
_ Oi amigaaas!
Ana tinha chegado no bar, para interromper o melhor da história.
_ Como tu chegou tão rápido aqui? – quis saber Clara.
_ Ah, o Rodrigo me trouxe.
_ E quem vem a ser o Rodrigo?
_ O cara que eu fiquei ontem, né?
As outras três fizeram um "aahhhh" coletivo e Cláudia completou:
_ Está bem, esse Rodrigo pode ser a segunda história da tarde. Agora estamos falando da Letícia e do Diego.
_Ah! Jura? Conta de novo! O que eu perdi?
_ Ela intimou o cara para transar e ele a levou para a casa dos pais dele.
_ Quê???
_ Calma, não foi bem assim.
Letícia repetiu uma versão mais curta da história, engatou para a ida dos dois ao quarto, as roupas sendo jogadas no chão e começo das preliminares.
_ Ele te tocou? Fez sexo oral? Tu gozou? _ Clara estava ansiosa por detalhes. Nutria uma certa preocupação com a relação da amiga com o sexo. Achava que toda a encanação dela a fazia perder a melhor parte.
_ Ahh, ele me tocou. Foi beeem bom, mas eu não sei se eu gozei, não. E depois, na hora do sexo...
_ Ai, Lê, o que aconteceu? Não me diz que o guri broxou? – perguntou Cláudia, que sempre previa o pior.
_ Não, não. Mas talvez fosse até melhor. Porque ele demorou, viu?
_ Como assim demorou?
_Ah, sei lá. Pareceu que ele ficou hooooooooooras em cima de mim. Juro! Deu até tédio. Um certo momento eu vi uma cutícula saltando na minha unha, fiquei pensando se tinha alicate e lixa na bolsa para dar um jeito quando ele saísse de cima de mim. Ou seja: ele demorou tanto para gozar que eu fique ausente.
_ Ai, amiga, que triste. Mas ele não viu que tu estavas entediada, não tentou te animar?
_ Pior que não, viu? Ah, mas eu até entendo ele, na hora que estamos lá, no clímax, a gente pensa que a outra pessoa está curtindo também, né? E quer saber no outro dia de manhã, ele foi tão fofo comigo, me levou café da manhã na cama e tudo.
Verdade feminina número dois: uma boa parte das mulheres prefere carinho na manhã seguinte do que satisfação na hora do sexo.
_ Espera, e a pergunta mais importante do dia: como tu fez para sair sem ser vista pela família dele?
Letícia ficou com as maçãs do rosto vermelhas quando disse que aproveitou o banho da mãe, a distração do pai vendo o jogo e ausência do irmão para sair, pé ante pé, pela saída de serviço.
Na saída do prédio, ainda teve que ouvir um "bom dia" do porteiro. Olhou no relógio, viu que eram 9 da manhã e sentiu uma pontada dor de cabeça, primeiro sinal da ressaca que sentiria durante aquele dia. Catou seus óculos escuros na bolsa e ao colocá-los nos rosto retrucou o porteiro:
_ Bom dia pra quem?

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Letícia mal terminou sua história e Ana começou a dela. Mas para aquele grupo de amigas, as aventuras sexuais da jovem advogada eram um tanto entediantes e até revoltantes. Quase sempre era a mesma coisa. Ela ia para a balada com a virilha em chamas. Sério, estava para nascer uma mulher com o desejo sexual mais forte que o dela. Quase toda a semana era a mesma coisa e naquela não parecia ter sido diferente. Ana bebeu algumas a mais, se encantou por cara e soltou uma isca certeira para ele. Esse era uma dos méritos dela. Ela sabia escolher o cara exato para satisfazer os seus desejos sexuais. As amigas nunca souberam qual era a tática. Ela não escolhia os com cara de mais tarados ou os mais bonitos. Mas ela sempre sabia escolher os que estavam a fim de a acompanhar em suas maratonas sexuais.
Na noite anterior, Ana e o tal Rodrigo beberam juntos até ás 5 da manhã. Fecharam o primeiro bar às 4h. As amigas foram para a casa e ela arranjou forças para ir com o pretê para o bar seguinte, onde ficou até a hora que os dois foram para o apartamento dela. Transaram, gozaram, trocaram muitas carícias, mas não intimidades nem número de telefone. Fim.
As amigas de Ana tinham a teoria que um dos motivos mais fortes que a fizeram sair da casa dos pais era a possibilidade de liberdade sexual completa que ela conquistou com seu apartamento. Decorado de forma cool e despojada, o quarto-e-sala dela devia ter recebido, no mínimo, uns 10 caras, em seu 8 meses como locatária. O prédio dela era pequeno, quase inabitado e sem porteiros para encher o saco. Ana costumava dizer que, isso sim, era liberdade sexual: nenhum homenzinho de uniforme azul contando os caras que entravam e saiam da casa dela.
Ana já tinha tido vários namorados e, mesmo assim, conseguia ser que mais tinha transado com caras diferentes entre as amigas. Entre uma decepção amorosa e outra, chegou a transar com algumas mulheres. Mas descobriu que aquilo não era para ela: sentia falta de um pau. E sentia sempre: duas semanas sem sexo para ela, era uma eternidade.
Às vezes, Clara se sentia estranha ouvindo todas as histórias da amiga. Há uns seis meses, ela tinha passado pelo o que se pode chamar de seca sexual. Entre um final de um caso mega mal resolvido e o primeiro carinha X que ela transou foram mais de onze meses.
Quase um ano, na verdade. Quando faltava uma semana para fechar 365 dias sexo, Clara se desesperou: ligou para um ex-colega da faculdade que sempre dava em cima dela e, na maior cara dura, o convidou para ir ao aniversário de uma amiga-de-uma-amiga qualquer, só com a desculpa de que estava pensando em fazer o mesmo curso de pós que ele em Barcelona e precisava de umas informações.
Verdade feminina número quatro: Sim, as mulheres têm relação afetiva com o sexo. Mas sabem, perfeitamente, usar (e abusar) de um disk-foda quando a situação pede.
O nome do tal ex-colega era Marcelo e ele andava de moto. Clara não sabia se achava aquilo sexy ou brega. Mas sabia que estava precisando fazer sexo, urgentemente. Quando ele ofereceu para buscá-la em casa, Clara agradeceu, mas disse que iria de táxi, os dois se encontrariam lá.
A tal festa da amiga-da-amiga era num pub com ar descolado, mas que só tocava música pop. Logo que Clara chegou, deu de cara com um cara sentando num banquinho, com um violão tocando algum hit dos anos 80. Gostou da música, mas não da voz do cara.
Cumprimentou alguns amigos e conhecidos, sentou, pediu uma cerveja e duas músicas depois o pretê chegou.
Marcelo caminhou até ela meio tímido, reconhecendo o lugar. Clara aproveitou a caminhada do rapaz para observá-lo: estava com uma camisa pólo verde-musgo e a barba por fazer – uma dupla extremamente atrativa na opinião da garota. A avaliação do moço caiu um pouco quando Clara percebeu que ele carregava o capacete embaixo do braço direito. Tinha decretado: definitivamente motoqueiros não eram sexies.
Rapidamente, Clara afastou aqueles pensamentos da cabeça. Naquela noite não importava. O que ela queria era fazer sexo, acabar com sua seca e pronto. Mas de repente, quando o moço sentou a lado dela e começaram a conversar, ela começou a repensar a situação. Ela mal conhecia o cara, será que ia ser bom? Será que ele ia tratá-la bem?

Preocupada com esses pensamentos de ‘mulherzinha’, convidou seu par para tomar uma tequila. Tomaram uma, duas, três. Se beijaram pela primeira vez entre a segunda e a terceira. E quando Marcelo pensou em pedir a quarta, Clara sugeriu que pagassem a conta e fossem para a casa dela.

Clara até hoje não sabe se foi a tequila, a sede de sexo que estava ou a potência de Marcelo, mesmo. Ela só sabe que naquele dia quente de verão transou quatro vezes seguidas, quase sem parar. Posições, orais, mordidas e beijos fortes: a noite foi inesquecível.

Adormeceu sozinha depois do banho frio que tomaram juntos. Já eram 8 da manhã quando ele pegou o famigerado capacete e foi para casa. Na cama, ela dormiu com um sorriso nos lábios vendo todas aquelas embalagens de camisinhas jogadas no chão.

Depois daquela noite, desencontros marcaram a história dos dois. Primeiro, Clara viajou por uma semana, a trabalho. Depois ele tirou férias e sumiu por quinze dias. Na última vez que se viram, Clara estava ficando com um cara qualquer e ficou sem jeito de falar com ele.

Nos últimos cinco meses, os dois não se esbarram mais. Mas ao lembrar dessa história, Clara checou a agenda de seu celular, para conferir se ainda tinha o telefone de Marcelo. Só para poder usar, da próxima vez que precisar...

Verdade feminina número quatro: mulheres também guardam uma lista de telefones de caras para ligar, just in case...
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Perdida nas lembranças do Marcelo, Clara nem percebeu quando Cláudia começou a falar sobre seu namoro com o Ricardo. Os dois estavam juntos há quatro meses e ela era única do grupo num relacionamento naquela época.

_ Pô, gurias. Bem que vocês podiam ir num desses churrascos da turma do Ricardo, né? Eu juro que ele tem uns amigos bonitinhos...

_ Ai, Cláudia, não leva a mal não. Eu adoro o Ricardo, mas aquele bando de amigos engenheiros e playboys, eu não agüento, não. – disse Letícia, sendo porta-voz das outras três.

_ Pior é que vocês estão certas. Eu amo o Ricardo, sabe? Mas aqueles amigos dele são uns malas. Sinto tanta falta de vocês... Acho que eu e o Ricardo estamos juntos demais, quase não vejo mais vocês. E além do mais, ando achando ele meio grudento.

_ Cala a boca, Cláudia! Não vai ter mais um ataque de insegurança e desejo irreal de voltar a ser solteira. Tu estás com um cara que tu amas e que te ama. É tudo que a gente fica procurando, noite após noite nessas baladas... – sentenciou Clara, deixando a amiga reflexiva.

Verdade feminina número cinco: Mulheres têm tanto medo de relacionamentos quantos os homens.

Naquela noite de sábado as amigas não saíram juntas. Clara e Letícia foram a um bar de jazz. Clara até tentou, mas não teve coragem de ligar para Marcelo. Lê recebeu uma carinhosa e promissora mensagem em seu celular, enviada por Diego. Cláudia decidiu ficar em casa vendo um filme com Ricardo. Já Ana ainda estava pensando no que fazer. As amigas a convidaram para o bar de jazz. Mas ficar sentada num lugar contemplativo ao sm de uma música quase introspectiva não fazia nem um pouco o estilo dela. Quando o relógio bateu a meia-noite não teve dúvida: colocou se vestido preto decotado de guerra e foi para alguma balada sozinha.

Verdade feminina número seis: carência é a pior inimiga das mulheres.

*** Bárbara dos Anjos Lima (15 de setembro de 2007)

A dama de preto chega sem avisar

O telefone tocou antes das sete da manhã. Clara odiava quando o telefone tocava antes das sete da manhã. Nunca era coisa boa. Quase sempre era alguma amiga bêbada, precisando de cuidados e pedindo abrigo em sua casa. Mas naquela manhã nublada de janeiro a ligação traria uma notícia pior.

Os primeiros toques do celular chegaram nos sonhos de Clara. No começo ela achou que fosse o sino de uma igreja gótica, às margens do rio Sena. Depois percebeu que nunca tinha saído do Brasil, muito menos a Paris. Só podia ser o despertador do celular. Mas era sábado, porra. Será que ela tinha programado o celular, sem querer, no final de semana?

Tinha na época 22 anos. Odiava acordar cedo com todas as suas forças. Mas estava no último ano da faculdade, fazendo estágio, trabalho de conclusão, com medo do mercado de trabalho e acordando todo dia às sete e meia da manhã para ir ouvir um velho repórter frustrado falar sobre o papel da mídia na sociedade moderna ou uma quarentona descolada explicar como conquistava suas fontes.

Clara virou para lado e buscou seu celular. Olhou no visor “Pai chamando”. Definitivamente não era coisa boa. Tinha herdado de seu pai a repulsa por acordar cedo. Se o velho estava ligando naquela hora, boa coisa não era.

_Alô... (voz saiu falhada, como toda voz sai ao acordar)

_ Oi filha. Ahã, a tua tia acabou de me ligar. A vó, a minha mãe... A tua vó morreu.

Tudo ficou turvo na vista de Clara. Será que o sonho as margens do Sena tinha virado um pesadelo? Sua avó tinha estado no hospital no mês anterior. Mas já estava melhor, tinha voltado para casa. Ela tinha falado com a avó no telefone ontem. O que mesmo que tinha falado? Será que Clara tinha falado o quanto a amava? O símbolo de mulher forte que representava para a neta? Na semana seguinte elas tinham combinado de almoçar juntas. Dona Alice não desmarcava compromissos, principalmente com a neta. Como tudo aquilo podia estar acontecendo?

_ Filha, tu está aí? Está me ouvindo? Vou pegar teu irmão, quer que eu passe aí? Vamos nos reunir na casa da mãe, digo, do pai...

Clara se sentiu um tanto egoísta. Perdida em seus pensamentos nem se tocara que ela tinha perdido sua avó, mas seu pai tinha perdido a mãe. Devia estar mais confuso e desnorteado que ela.

_ Não pai, não precisa. Vou falar com a mãe. Vou com ela. Nos encontramos lá, está bem? Já, já estou indo para lá também.

Depois de desligar o telefone, Clara respirou fundo três vezes. Queria se controlar antes de bater na porta do quarto da mãe. Queria ensaiar alguma maneira de contar a notícia de um jeito bom. Não conseguiu. Levantou na cama, se olhou no espelho e começou a chorar. Sem parar. Soluçar. Até que, sem querer, soltou um grito, que acordou a mãe:

_ O que houve minha filha? O que aconteceu? Me fala...

_ A vó Alice, mãe. A vó Alice... Morreu.

A mãe de Clara também perdeu o chão. Tinha se separado do pai da menina há mais de 10 anos, mas seguiu com um relacionamento muito forte com a ex-sogra. O carinho que a matriarca da família Abeu tinha pela mãe de seus netos era muito grande e a recíproca verdadeira.

Toda vez que Clara pensava na relação da avó com alguém sentia que aquele dia ia ser um dos mais difíceis da sua vida. E seria um dia longo. Ao abraçar a mãe viu por cima do seu ombro que nem dez minutos tinham passado desde que ela tinha recebido a terrível notícia. Para ela, parecia que já estava sofrendo há horas.

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“Lavar o rosto, escolher uma roupa. Para quem ligar? Devo avisar minhas amigas? Será que alguém já ligou para minha prima? Que roupa eu coloco? Para que tudo isso? Ai, meu avô deve estar muito mal...” Clara não conseguia organizar os pensamentos. Só sabia que não queria ficar sozinha. Que queria estar perto da família, perto de gente que entendesse o que ela estava passando.

Sem nem perceber, colocou o vestido roxo que avó tinha lhe dado de presente no último Natal. A mãe falou para ela comer. Tentou suco, leite, bolacha de água e sal. Nada desceu. Desistiram do café e foram encontrar o resto da família.

No táxi, a caminho da casas dos avós, Clara prestou atenção em cada curva, árvore e rua do caminho. Através das lentes dos óculos escuros avistou na esquina da casa, seu pai e seu irmão descendo do carro. Desceu do táxi, caminhou até seu pai e o abraçou por longos segundos, sem conseguir dizer uma palavra.

Dentro da casa, o clima era de praticidade. A tia mais velha de Clara tinha assumido o controle da situação. Tinha feito uma lista e ficava disparando perguntando aos outros familiares. “Ligaram para o Fulano? Encomendaram as flores? Quem faz o anuncio para o jornal?”, disparava.

No meio do mar de perguntas e respostas, Clara avistou seu avô. Sentando numa poltrona no canto da sala, ele olhava fixamente para um ponto na parede, sem mal piscar. A neta se aproximou para abraçá-lo e ele disse:

_ Ela estava bem, vimos um filme e conversamos ontem de noite. Ela falou que ia almoçar contigo semana que vem. Ela me deu um beijo no rosto antes de dormir...Daí de madrugada acordei com um gemido forte e o peso do corpo dela caindo no meu corpo. Foi tudo tão rápido. Chamamos médico, ambulância, mas já era tarde demais...

Então era assim que a morte chegava: de repente, pensou Clara. A avó era a primeira pessoa próxima dela que morria. A outra avó era mais distante dela, mas estava viva em bem disposta numa cidade do interior. Já o outro avô morrera cedo, quando ela tinha menos de cinco anos e pouca capacidade de lembrar.

A morte chegava perto da vida dela só agora, depois do 20 anos. A maioria das amigas já tinha passado por isso com avós, tios-avós ou até pais. Mas Clara se via lidando com algo que ela não estava preparada. E logo com avó que ela era tão próxima, tão íntima, tão ligada.

A jovem sentou ao lado do avô e ficou tentado pensar em algo para dizer, mas nada lhe ocorreu. Poucos minutos depois, alguém veio ver se Clara e o avô queriam comer algo. Ela ainda não conseguia pensar em comer. Mas não queria ficar mais na sala, quase que sem função e resolveu ajudar a tia a servir café para as pessoas. Se não conseguia ter palavras para acalentar ninguém, servindo fortes doses de cafeína para a família colaboraria de alguma maneira.

Depois do pai e dos tios resolverem algumas coisas pendentes, a família seguiu para o cemitério. Quando era mais nova Clara tinha fascínio por lugares sombrios. Perdeu a conta das vezes que atravessou, por pura curiosidade, o cemitério que tinha ao do seu colégio. Achava que era um lugar calmo e tranqüilo. Mas naquele dia, mesmo antes de chegar ao local do enterro, Clara soube que sua imagem de cemitério mudaria. No mínimo, seria o palco de um dos piores dias da vida dela.

Assim que chegou na capela grande, onde a avó fora colocada, Clara suou frio. Já haviam algumas pessoas lá, sentadas ao redor do caixão, contemplativas. Entre tias-avós, vizinhas e primas de sua avó, estava seu avô. O velho patriarca da família Abreu escolheu a cadeira mais perto do caixão onde estava sua mulher e dali não saiu a tarde inteira.

Os avós eram um símbolo para Clara. Um símbolo de casal realmente apaixonado depois de mais 50 anos de união. Um símbolo de força, disposição, inteligência. Quando viu aquela cena temeu pelo futuro do seu Francisco, que não teria mais sua ‘nega’ ao seu lado.

Pé ante pé, Clara caminhou até aquele corpo que representava tanto para ela. Lembrou de Natais, brincadeiras, de deitar ao lado da avó na cama e assisti-la tricotar. “Vó, faz um vestido para minha boneca? E um para mim, faz também?”.

Aquilo era muito estranho. O corpo, as roupas e o perfume eram da avó. Mas chegou bem perto do caixão e viu, no rosto deitado, uma expressão que não reconheceu. Respirou fundo e saiu de perto. Não fazia sentido nenhum ficar por perto: a avó não estava mais por aqui.

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Surpreendentemente, boa parte daquela tarde não foi tão sofrida para a neta da dona Alice. Muitas pessoas circularam pela funeral. Amigos, parentes próximos e distantes. Seu tio chegou de Brasília no meio da tarde. Uma irmã da avó veio às pressas do exterior. Todos que chegavam faziam questão de falar com seu Francisco e alguns conversavam com Clara. Condolências, abraços e muitas memórias.

Um primo lembrou da deliciosa ambrosia feita pela avó. Uma ex-vizinha da família recordou os cartões que sempre recebia pelo correio, todo Natal e aniversário. Um tio falou do bom humor da mãe e o irmão lembrou que ela sempre falava demais.

Durante o clima de recordações. Clara pensou que a avó merecia estar ali ouvindo as pessoas falarem tão bem dela. Questionou a vida após a morte, a eternidade, o fim da vida - mas como sempre no caso dela, não chegou a nenhuma conclusão.

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Foi na hora da missa final que Clara sentiu a maior dor. O padre falou palavras motivadoras de agradecimento e superação. Em vão. Quase todos no recinto choravam.

Na hora da última oração seu Francisco pegou na mão da mulher. Os dois, sempre tão católicos, iam juntos à missa, quase todo domingo. Durante o Pai Nosso a família se rendeu: as tias de Clara choraram alto, o pai e o tio de Clara, ateus por convicção, homenagearam a fé da mãe e repetiram a oração que não rezavam desde a pré-adolescência.

Clara segurou forte na mão do irmão que chorava tanto ou mais que ela. A dor do vazio tomou conta do coração dela. Era isso. A avó tinha partido. Teve vontade de gritar, clamar por justiça. Dona Alice não ia ver sua neta mais velha se formar na faculdade? Não iria ao casamento de um dos netos daqui menos de seis meses? Clara não aprendera a fazer ambrosia e parecia estar esquecendo o gosto do famoso doce da avó enquanto anunciavam o fechamento do caixão. A vida parecia injusta demais.

Dos momentos finais do sepultamento, quase ninguém da família lembra. Estavam todos inebriados por lágrimas, tristeza e dor. Clara estava lá, mas também pouco recorda, estava quase que anestesiada por aquele dia cansativo.

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Durante a semana seguinte Clara tentou processar a dor. Racionalizou a morte e tentou desviar seus pensamentos da dor. Acabou conseguindo. Não que o vazio tivesse sido preenchido e não existisse mais. As saudades da avó agora iriam durar para sempre. Mas, aos poucos, a dor iria ficar mais escondida entre outros sentimentos. Clara só torcia para que fossem sentimentos felizes.

A moça se permitiu mergulhar na dor mais uma vez naquela semana. No dia do almoço marcado, a Clara abriu a agenda e viu escrito “almoço com a vó: confirmar lugar”. Quase todos os almoços das duas eram no mesmo restaurante, num shopping perto da casa da avó. No dia marcado, Clara foi até o lugar. Sentou sozinha, pediu um prato e almoçou de óculos escuros, na tentativa que os garçons não percebessem que ela chorava. Em vão.